Voyeurismo. Um dos maiores temores até para quem não conhece o medo pelo nome, o medo de ser observado e não saber Onde ou por Quem. Essa impotência por si só já é uma tortura, uma sensação de profundo desagrado, a privacidade indo pelo ralo. O irônico é notar como esse fato, cada vez mais presente com hackers invadindo webcams via redes wi-fi já foi mostrado num sem-número de produções semelhantes de antigamente, explorado com êxito por tantos tratados de cinema; mas se o que importa para um tema já dilacerado é a dosagem para sua sobrevivência,
A tortura do medo é de longe o que mais fez bem para esse cinema de suspense, um dos gigantes, conseguindo nutrir prolixidade além do gênero em uma aula de closes tenebrosos, sonoridade contínua e uma iluminação claustrofóbica inspirada por clássicos de Alfred Hitchcock e Henri-Georges Clouzot. Ainda um pouco de história, vale a pena citar que produções desse tipo já eram populares no Reino Unido, com a obra-prima
A noite do demônio, de Tourneur, e
O corvo de Clouzot sendo os melhores exemplos, mas todas limitavam sua tensão em preto e branco, ou seja, no cinema do ontem –
Psicose e
A aldeia dos amaldiçoados, ambos de 1960 também. Faltava medo colorido de verdade, sangue vermelho, não preto mais. Em sua última direção, Michael Powell estava no lugar certo, na hora certa.
O filme começa com uma câmera subjetiva feita para comprar o espectador, na época acostumado com as limitações monocromáticas, hoje com truques vertiginosos e vulgares das câmeras em prol da masturbação mental 3D. Um dos maiores dons do cinema sempre foi subverter expectativas, e é claro que como todo dom isso pode ser uma maldição, mas aqui Powell não deixa ocorrer digressões rítmicas um segundo sequer. Muito de tal privilégio vem justamente dos closes singulares e idênticos, no bom sentido, de seus personagens apavorados por seus óbitos previsíveis (Ou não) ou assustados pelas condições desafiadoras tanto para eles quanto para nós, meros interlocutores de uma história de traumas familiares e consequências sociais. Enquanto o equilíbrio corre rio acima, sereno, o desequilíbrio narrativo-visual vem em contraponto - determinado corte entre planos, a luz dá lugar a sombras deformadas no mesmo ambiente e volta a clarear no próximo corte, ou vice-versa. Deslizes comuns em uma obra transcendental, infelizmente, pois isso não é subversão. No mínimo, frustração momentânea, e não lembro disso apenas para expôr algum aspecto negativo: Faz a diferença!
Por outro lado há aspectos primorosos que não foram levados à tona, justiça seja feita: As atuações, por último a principal. Temos aqui a moça que obviamente vai ser morta no final, aquele rosto inocente escolhido pela produção para ser cultivado até o último segundo e ser morto pelo vilão, certo? O dom de subverter expectativas, Powell não esquece disso para uma história original como é
A tortura do medo. Coadjuvantes são as peças do tabuleiro e vão se movendo a gosto do assassino, uma pessoa atormentada pelo passado, uma sátira mórbida da obsessão por capturar imagens que muitos artistas detêm - todos na verdade, é possível generalizar nesse quesito. O competente ator Karlheinz Böhm interpretou Mark Lewis com os olhos (Antes de Javier Bardem e Heath Ledger), trejeitos cínicos que deram inveja a Anthony Perkins e seu Norman Bates muitas vezes apático. A tensão de Lewis era maior do que a tensão de suas vítimas, intimidadas por sua câmera como ratos numa encruzilhada felina. Seus lábios sendo mordidos, seus olhos que jamais piscam, sua ansiedade não por simples espionagem, mas sua sede pela morte para desfrutar da dor alheia, isso para Mark Lewis é impagável, exatamente como a entrega do ator ao personagem para nós. Subestimado Böhm foi, os melhores sempre são.
Em meio a tudo isso, uma metalinguagem afiada (Desculpe o trocadilho para quem já viu o filme) com tudo do bom e do melhor, homenageada em definitivo anos depois por De Palma em
Um tiro na noite.
Embriagante, adjetivo empregável por ventura as comparações divertidas que não chegam a lugar nenhum sobre esse tal de voyeurismo.
Janela Indiscreta de Hitchcock virou sinônimo para a prática, até porque foi feito antes de
Peeping Tom (Termo inglês para xeretice, voyeurismo), e para mim, aprimorada no clássico sessentista. É mais cinema, é mais amplo, o leque se abre mais! Em
O silêncio dos inocentes, os pelos das nucas se arrepiam ao acompanharmos Clarice andando no escuro seguida pelos binóculos de um assassino transexual: Nós. A câmera subjetiva usada com primor equivalente por Argento em
Prelúdio para matar, ou em
A bruxa de Blair, heranças inestimáveis!
A tortura do medo, geralmente visto em lista dos melhores filmes já feitos, não deve ganhar os créditos por criar o método, não criou nenhum, mas refrescou o máximo que conseguiu em sua curta e coerente duração, tornando seu valor imprescindível e fixável à parede da história, a base de um contexto mais contemporâneo. É o que importa. Ainda.
NOTA: 8,5.