Era tarde na casa de Dulcineio. Não só na casa dele como também na cidade toda. Dulcineio dormia tranquilamente, sonhando com patinhos nadando num lago poluído e fedorento. De repente, uma das latas que boiava naquela superfície contaminada e podre abriu uma bocarra cheia de dentes pontudos e comeu os patinhos. Dulcineio acordou gritando:
- NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOO! Aquela lata de refrigerante de melancia que eu joguei ontem no lago enquanto voltava de uma partida de bocha com meu bisavô não pode ter comido cinco patinhos que foram passear além das montanhas para brincar quando a mamãe chamou! EU NÃO SOU UM ASSASSINO! Não posso passar o resto dos meus dias limpando vasos sanitários porcos e entupidos de cocô fedido numa prisa nojenta e imunda!
Depois de sofrer e entrar em depressão por ser o responsável pela morte de cinco bichinhos inofensivos, ficou em silêncio por três segundos (depois voltara a reclamar da amargura de sua vida), mas esse tempo foi o suficiente para ouvir um barulho esquisito, uns gritos desafinados e esganiçados que vinham de sua cozinha. O que seria? Um bandido? Será que este teria descoberto o dinheiro que Dulcineio guardava dentro do pote de ajinomoto que ficava escondido em cima do armário?
Ouviu um barulho: alguns objetos caindo. Era som de metal se chocando com o piso.
"As panelas!", pensou o apavorado Dulcineio. "Ele descobriu meu talão de cheques dentro do meu Buda de porcelana que escondo numa panela de pressão que nunca uso, atrás da pia!"
Colocou a mão para o lado, tateando sua cama à procura de sua esposa. Ela não estava lá! Foi aí que se lembrou que nunca foi casado e morava sozinho num apartamento de número 777, no 7º andar de um edifício de número 707.
O medo o deixava alucinado. E se o suposto bandido descobrisse suas moedas no congelador, dentro de um saco de carnes cruas que estava lá há quatro anos? Não tinha coragem de fazer nada. Deitou sua cabeça no travesseiro duro e fechou os olhos, fingindo estar dormindo. Por que o ladrão invadiu seu apartamento logo hoje que não estava dormindo com seu taco de baseball?
O barulho parou. Dulcineio ficou em silêncio, apavorado, tenso, ofegante. Passarem-se quinze minutos e os maus pensamentos não saíam de sua cabeça. "Chega!", ele pensou, "eu vou descobrir o que está acontecendo da minha cozinha." Ele se levantou e começou a andar. A cada passo, o piso de madeira rangia. Por um tempo, decidiu procurar sua espingarda, mas prometeu a si mesmo que só iria em caso de emergência. E aquilo não era, afinal ele nem sabia quem estava lá. E se acabasse acertando o vizinho que tentou fugir de seu apartamento cavando um túnel e acabou entrando lá por engano? Chegou na cozinha. A porta estava encostada. Ele a empurrou com o pé, o barulho da madeira podre era a única coisa que se ouvia, e Dulcineio tomou um susto quando viu...
Continua...
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